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Uma terra prometida
Akane quase não para quieta. De manhã, vai à escola. À tarde, depende do dia: no ano passado, quando fez onze anos, começou a empacotar quiabos e goiabas às segundas, quartas, sextas e sábados; às terças e quintas, calça as sapatilhas depois do almoço e corre para a aula de balé. À noite, agenda cheia também. Segunda é dia de aula de japonês. Sexta, de desenho. Quarta, de música. Akane estuda piano e agora começou com a viola. “Já tentei violino e cello, mas estou gostando mais da viola; não é tão aguda, nem muito grave”, diz. Aos domingos, ainda aproveita para treinar softball. Tão logo fique mocinha e termine a escola, Akane passará as manhãs na roça, colhendo os mesmos quiabos e goiabas que hoje ajuda a embalar. Neste exato momento, primavera de 2009, 61 pessoas fazem desta fazenda de 35 alqueires nos arredores de Mirandópolis, noroeste paulista, a seiscentos quilômetros da capital, seu endereço. Yama, eles a chamam; termo que um japonês talvez traduza como “mato” (e de fato tudo era um espesso matagal no início), mas que eles aqui entendem como “casa”. Quatro gerações separam o habitante mais novo, Takuto, de dois anos, do mais velho, Tatsukichi, de 105 anos. Para todos eles, incluindo Akane, o dia amanhece no breu. A lua continua pendurada no céu quando Katsue, Yo, Nozomi, Podin, Emy ou Missa – quem seja a cozinheira de plantão – sopra o berrante da varanda do refeitório. A cachorrada toda uiva junto, engrossando o aviso de que a presença de todos é requisitada naquele instante. O café da manhã é servido pontualmente às seis. Mas não sem antes fazer-se um minuto de silêncio em agradecimento à terra e às mãos que permitiram que aquele alimento chegasse ali. Todas as refeições na comunidade começam com o itadakimasu, prática antiquíssima de raiz xintoísta cuja tradução literal é “eu humildemente recebo”. Mokuto – “silêncio” – é a palavra que abre esse minuto de suspensão em que todos os moradores, seja qual for a fé, entregam-se ao diálogo com o divino. Por muitos anos foi Katsuo, de apelido Kuma-san, quem presidiu o itadakimasu. Depois que ele ficou doente, é de Sergio, um dos filhos do fundador Isamu Yuba, a incumbência de iniciar a reza e de encerrá-la proferindo naore, termo que delimita o fim dessa submersão nos silêncios da alma. Retratos de Isamu Yuba espalhados pelo refeitório observam, entre a bênção e a vigilância, todos os movimentos daqueles que, mais de três décadas após sua morte, dobram-se e desdobram-se para preservar sua utopia. Três, segundo o fundador, seriam os alicerces para manter de pé o sonho dessa sociedade livre do dinheiro e dos desejos materiais: cultivar a terra, amar as artes e orar. Embora a maior parte dos atuais moradores seja cristã protestante, poucos vão à missa, rezada em japonês, na igreja da Primeira Aliança, o bairro onde fica a fazenda. Para muitos, o terceiro pé da trindade basilar resume-se apenas ao itadakimasu. O refeitório, um imenso galpão sustentado por estacas de aroeira, é o coração, a alma e o estômago da comunidade Yuba. Lá acontecem todas as refeições, as reuniões sociais, as festas de casamento, as cerimônias fúnebres, os ensaios do coral e as aulas de piano. Por três décadas, houve também sessões de cinema. Uma vez por semana, Isamu ia a São Paulo buscar filmes japoneses, que exibia pelas colônias vizinhas num antigo projetor montado na garupa de um trator. A última escala do cinema itinerante era sempre o refeitório Yuba, onde a comunidade inteira – e às vezes gente de fora – se amontoava para ver gueixas e samurais projetados sobre um grande pano pendurado no meio do salão. Já faz quase vinte anos que o projetor foi trocado por um acervo de dois mil títulos em vídeo de filmes e novelas, todos em japonês, e duas televisões: uma que transmite canais do Japão, outra, do Brasil. A primeira sempre é mais concorrida. Na outra, só a Copa do Mundo e a novela das oito são capazes de aglutinar quantidade considerável de pessoas. Não raro as duas televisões estão ligadas ao mesmo tempo. E sempre tem alguém sentado no velho piano ao lado, entregue a algum estudo de Chopin. Refeitório também é lugar de se alimentar o espírito. Terminado o café, o ônibus que carrega as crianças até a escola estadual na Primeira Aliança estaciona frente à varanda. Esta será a rotina de Akane pelos próximos cinco anos. Depois, caso não decida abandonar a comunidade, seu destino será o mesmo que hoje é o de moças como Mie e Satie. Toda manhã, elas se cobrem do lenço às botas, montam no trator e saem para as plantações de quiabo e goiaba, dispostas a suar debaixo de um sol pouco gentil com peles asiáticas. Nas segundas, quartas e sextas, serão vistas de alicate na mão, cortando os quiabos com o cuidado de não machucar as florzinhas de cor pálida. Quiabeiro é planta que floresce e dá fruto todo dia, o ano todo. Goiabeira também, e é por isso que as duas formam a principal fonte de renda da comunidade. A colheita da goiaba acontece às segundas, quartas e sábados, quando Mie, Satie e quem mais puder ajudar percorrem, fileira a fileira, as 1700 goiabeiras da fazenda. Terças e quintas são os dias de podá-las. Todo mundo em idade ativa acaba cooperando onde a mão-de-obra é mais requisitada, mas há uma clara divisão nas tarefas. “Os meninos vão para a roça, as meninas vão para as goiabas e os quiabos”, especifica Lintaro, o irmão mais velho de Akane. Ele, como a maioria dos rapazes e homens da comunidade, gasta as horas arando, carpindo e realizando tarefas que exigem maior musculatura. Com o detalhe de que, entre o café da manhã e a lavoura, ele ainda se ocupa de ordenhar trinta litros diários de leite das oito vacas da fazenda. Houve um tempo em que todos os membros da comunidade Yuba se revezavam nos serviços, de modo que todo mundo conhecesse as diversas etapas de produção. Nestes dias em que há poucas crianças nascendo e muitos jovens saindo, cada um acabou virando especialista em alguma coisa. Lintaro ordenha as vacas. Hataske planta arroz. Maurício cuida das mangas. Hiyo produz shoyu e missô. Issamu e Daigo entregam os produtos nos mercados da região. Tsuji, Junko e Tikka cultivam shiitake. Yako e Takayama dedicam-se à horta. Mitsue e Yusuke se ocupam dos porcos. Marian faz vassouras de palha de milho. Aya cria orquídeas. Salário, ninguém recebe. Nos 75 anos de existência da comunidade Yuba, o dinheiro pouco circulou dentro dos limites da fazenda. Toda a renda obtida com a venda de quiabos, goiabas, mangas, shiitake e outros produtos é destinada à lavoura, à manutenção e ao pagamento das contas de luz e telefone. Tudo é comunitário. E mesmo nas casas de portas sem trancas, a propriedade privada praticamente inexiste. Os móveis são todos fabricados aqui. Cama, mesa, armário, sofá, tudo. Quem precisa de dinheiro para comprar algum objeto pessoal, como um par de sapatos ou um rádio de pilha, deve pedi-lo a Kopin, tesoureiro da comunidade. As roupas, as mulheres aprendem a costurá-las desde meninas. Mas todos também recebem muitas doações de gente de fora. “Eu mesmo nunca comprei uma roupa em toda a minha vida”, diz Daigo, de 25 anos. Cabe sublinhar: no modelo inventado por Isamu Yuba, ninguém é obrigado a trabalhar. “A liberdade depende da responsabilidade de cada um”, dizia o fundador. Ainda assim, desde cedo os yubenses aprendem que a conservação de um sistema como este só é possível se todos emprestarem um pouco de seu esforço. Kojiro, que há dez anos trocou o Japão pela vida comunitária, ainda se espanta quando vê as crianças dividindo uma barra de chocolate que acabaram de ganhar em partes exatamente iguais. “As pessoas aqui têm poucos desejos materiais”, conclui. E até quem vem de férias acaba na labuta. Natsu faz faculdade em Presidente Prudente e todo feriado junta-se a Mie e Satie na colheita de quiabos e goiabas. “Não é justo: enquanto eu estou fora, tem gente trabalhando em meu lugar”, ela diz. É de Yako e seu marido Takayama, por exemplo, o dever diário de garantir hortaliças fresquinhas na mesa do almoço e do jantar. Há três décadas eles consomem as manhãs – ela inconfundível em seu velho gorro de golfista, presente de um parente do Japão – cuidando de acelgas e salsões como se fossem filhos seus; tudo orgânico, “sem veneno”, como Yako faz questão de frisar. “Vida de lavrador é sempre a mesma coisa, mas todo dia tem coisa pra descobrir”, ela diz. Tanto é que a horta acabou virando fonte de inspiração. Yako é membro do corpo estável do Balé Yuba e jura que, no palco, sente-se como se estivesse rodeada de acelgas e salsões: “A paisagem é a mesma: quando a gente dança, a gente imagina céu e terra, tudo em volta”. (texto completo no livro) |