Reportagem publicada na revista Terra em abril de 2008. Fotos aqui.
|
A estrada para Timbuctu
Como o diabo, o fim do mundo tem muitos nomes. Um deles é Timbuctu. Há dois anos, uma enquete perguntou a jovens ingleses se sabiam onde ficava tal lugar. Dois terços responderam que era “uma cidade mítica”, talvez na América do Sul. O terço restante disse que Timbuctu simplesmente não existia. Ora, bastasse abrir o mapa da África. Três graus oeste, 16 graus norte: na borda sul do grande deserto, onde o Rio Níger desenha sua imensa curva rumo ao mar, eis Timbuctu. Mas o fato, como sabemos, não é páreo para o mito. E Timbuctu, a despeito de mapas, ainda é uma potente metáfora para o fim do mundo, um não-lugar, uma Shangri-lá das areias que o mundo ainda sonha descobrir. O mito nasceu em 1324, quando Mansa Musa, imperador do Mali, apareceu no Cairo a caminho de Meca. Emergira do Saara trazendo quinhentos escravos, cada um carregando 2 quilos de ouro, e 100 camelos, cada um com 150 quilos de ouro. Gastou tanto que o valor do metal por ali permaneceu desvalorizado durante anos. Quando perguntado de onde vinha, dizia: “Timbuctu”. Dois séculos depois, o viajante árabe-espanhol Leo Africanus foi lá conferir. Seu relato, de fazer inveja às mais mirabolantes histórias sobre El Dorado, eriçou a Europa. Durante 400 anos, muitos homens morreram e mataram pela chance de ver Timbuctu com os próprios olhos. Timbuctu existe, de fato, mas continua no meio do nada. Um ponto remoto nas franjas do Saara, uma cidade num miserável país africano que ninguém sabe ao certo onde fica. E, ressalte-se, ainda um bocado difícil de se chegar. Não estranha que sua existência ainda seja posta em dúvida. O melhor caminho é o único caminho: cruzar o Mali de sul a norte, acompanhando o curso do Rio Níger e varando asfalto, terra e água ao longo de 900 quilômetros. Foi o que fiz. Numa manhã tórrida e empoeirada de quarta-feira, acomodei-me num dos sete Range Rovers que compunham a expedição e parti de Bamaco. Para o viajante, a capital malinesa é mais cidade de partida que de chegada. Há pouco para se ver nas largas avenidas de Bamaco, a não ser o exemplo de uma dessas grandiloqüentes metrópoles africanas erguidas no frenesi que se sucedeu à conquista da independência nos anos 60. Durante o dia, um enorme mercado espalha-se por quase todos os bairros da cidade. Se você procura por fetiches, vá ao Boulevard du Peuple, onde vendedores de olhar sinistro exibem patas de babuíno, cabeças de cachorro, morcegos ressecados e couros de cobra a preços módicos. Mercados há aos montes no Mali, estrategicamente distribuídos ao longo da rodovia que nasce ao norte de Bamaco. Não há barracas, apenas caramanchões que protegem a mercadoria do sol. Do enxame de moscas, impossível protegê-la. Do pó, idem. Ainda mais em janeiro, tempo de seca e de harmattan – o vento que sopra do norte, carregado de areia saariana. Tudo é ocre: casas, aldeias, campos, árvores, você mesmo. Exceto as mulheres, cujos vestidos renegam a mimetização, desafiam a secura e enchem de cor as planícies, as cidades e os mercados malineses. Lição de geografia: o Mali é um dos maiores países africanos. Em visão de atlas, surge espremido entre a África saariana e os países à beira do Golfo da Guiné. Não tem mar, mas tem um rio. E metade de seu território é deserto. Aninhou três dos mais poderosos impérios africanos. Hoje figura entre as nações mais pobres do mundo – embora seja o terceiro maior produtor de ouro da África e um dos maiores exportadores de algodão do mundo. Primeiro encontro: os bambaras. Duzentos quilômetros ao norte da capital, paramos na aldeia de Sekoro. Está marcada uma visita ao rei Koké Coulibaly, nona geração de uma dinastia inaugurada em 1640 que comandou o Reino de Ségou nos séculos 17 e 18. Ele nos recebe em casa, vestido numa djellaba branca e esparramado numa espreguiçadeira que poderia ser um trono. Embora destituído de poder, não perdeu o ar de nobreza. Koké hoje só manda mesmo em Sekoro, berço do reino bambara, mas orgulha-se de ter introduzido água encanada, energia solar e escola na vila – por mais alto que seja o preço. “No primeiro dia em que você vai à escola, você se divorcia de sua cultura”, resigna-se. Os bambaras são o mais populoso dos 20 grupos étnicos que habitam o Mali. Um terço da população. Por mera vantagem numérica, seu idioma tornou-se a língua franca do país. Além do francês, que é oficial. Foram uma das últimas tribos a abraçar o Islã, mas não perderam o vínculo com os ancestrais. Em suas sociedades secretas de iniciação, homens e meninos praticam as mais obscuras crenças animistas. A mais poderosa é a komo, cujos membros agem como força policial dentro das vilas. Diz-se que são protegidos contra todo tipo de feitiço. Os malineses de modo geral estão longe de ser os muçulmanos mais exemplares do mundo. O guia Mamady, da tribo dos malinké, não esconde beber uma cervejinha com mais freqüência do que reza em direção a Meca. “Eu sou um mau muçulmano”, diz. No Islã à moda do Mali, até o antiqüíssimo sistema de castas foi mantido quando o assunto é casamento. De suma importância são a casta dos ferreiros – que têm o poder especial de transformar ferro e madeira em objetos sagrados – e a casta dos jalis, ou griots – menestréis que atuam como guardiões da história oral de cada povo. Sekoro está a poucos minutos de Ségou, antiga capital do reino bambara. É a cidade mais aprazível do Mali, e também a mais francesa. Como não respirar ares coloniais em seus bulevares arborizados e seus imensos casarões? É também um dos poucos lugares onde seus moradores podem sentar-se à sombra de uma mangueira e ver o sol esconder-se atrás do Níger. Ségou talvez seja uma das poucas coisas boas deixadas pela França em seus 60 anos de domínio, um período de resto marcado pela exploração impiedosa das lavouras de arroz e algodão. Antes dos franceses, o país fora a sede de três grandes impérios medievais: o de Gana (séculos 8 a 11), o do Mali (séculos 13 e 14) e o de Songhai (séculos 15 e 16). Timbuctu floresceu nos dois últimos, como o nó que amarrava as rotas comerciais do Saara com o comércio que navegava o Rio Níger. Do norte, vinha o sal. Do sul, chegavam ouro, marfim e escravos. Enquanto crescia o entreposto comercial, nascia também um invejável centro de estudos islâmicos, para o qual afluíam sábios e estudantes de toda a África setentrional. No século 15, chegou a abrigar 180 escolas corânicas, freqüentadas por 25 mil alunos. Segundo encontro: os bobos. Ao ouvir barulho de visita, um mar de crianças irrompe das ruelas da vila de Terekougo. Os adultos vão saindo aos poucos, desconfiados. Os bobos são um povo animista, minoria cada vez mais escassa num país 90% muçulmano. Significa que eles rendem homenagens aos espíritos dos ancestrais, e isto inclui rituais um tanto... chocantes. Um deles: sacrificar cães para celebrar a colheita. Ssua carne é devorada por todos os moradores, numa festa de três dias regada a cerveja de milheto (uma espécie de milho miúdo). Só acaba quando estão todos bêbados, inclusive as crianças. Dos cães, sobra apenas a cabeça, usada para decorar a casa de fetiches. “Se você tem um cachorro do qual quer se livrar, basta vender aos bobos que eles dão cabo dele”, diz Mamady. Outra iguaria que faz sucesso, especialmente entre as crianças, são lagartixas. Mas estas não exigem ritual nenhum: basta fritá-las e saboreá-las. Como um petisco. Terekougo é apenas uma das muitas aldeias que se sucedem ao longo do grande eixo de asfalto que rasga a savana. Cada uma com seu povo, suas crenças, seu modo de vida. Mas o lugar para onde tudo e todos confluem é um só: Mopti. Eis o grande porto, a cidade que entrelaça todos os caminhos, os de terra, de ar e de água. Debruçada sobre a confluência dos rios Bani e Níger, é Mopti quem dá vida e razão de ser ao grande rio que corta o Mali. Ela tem uma belíssima mesquita de barro, mas sua grande atração é mesmo o porto. Chego a Mopti quando o sol começa a cair. E descubro que as tardes, aqui, nunca são serenas. Um bando de gente se acomoda nas pinasses – as grandes canoas motorizadas que navegam o Níger – rumo às aldeias rio acima ou abaixo. As pinasses partem, as pirogas chegam. Aproximam-se lentamente, carregadas de peixe, como uma armada esperando o momento certo de atacar. A música preenche as ruas com as vozes retorcidas que nascem nos radinhos de pilha. Motos, carros, motores. Conversas em bambara, em bozo, em fulani. No porto, todo o mundo se entende. Em torno do cais, um vibrante mercado vende tudo o que você quiser comprar. Sal, inclusive. O comércio do sal no Mali ainda é o mesmo dos últimos mil anos. Começa nas longínquas minas de Taoudenni, onde o sal é extraído do subsolo do Saara na forma de blocos de 60 quilos cada. Eles viajam até Timbuctu no lombo de centenas de camelos, em caravanas que levam 16 dias através do deserto. De Timbuctu, o sal é embarcado nas pinasses até Mopti, onde é vendido em blocos, por peso ou mesmo em pó, ralado ali mesmo, no porto. Mopti também foi caminho do escocês Mungo Park em 1805, em sua viagem rumo a Timbuctu. Ele saíra da Gâmbia a pé, comandando 43 homens. Quando chegou ao Rio Níger, haviam sobrado apenas onze. O resto morrera de disenteria, malária, ataques de crocodilos e uma miríade de doenças tropicais. Ainda assim, seguiu viagem de canoa, pelo rio, ignorando os tributos que deveria pagar aos chefes locais. Foi o primeiro europeu a alcançar o porto de Timbuctu, mas não pôde desembarcar, de tantos inimigos que havia feito. Morreu numa emboscada, rio abaixo. No tempo de Mungo Park, todos os caminhos que levavam à cidade perdida exigiam tempo, determinação e um bocado de sorte. Sobreviver era um luxo. Hoje, o luxo é ir de Mopti a Timbuctu de avião. Mas atenção: ele decola duas vezes por semana, e nem sempre em hora. Às vezes atrasado, às vezes adiantado. Às vezes não decola. Na África, nunca se sabe. Pode-se também ir de jipe: serão 7 horas de viagem, a maior parte delas sacolejando num interminável areal. Ou à moda local, apertando-se numa pinasse lotada e enfrentando sete dias de navegação pelo Níger. Felizmente, há pinasses exclusivas para forasteiros. Um tanto mais confortáveis, um tanto mais velozes. Embarcamos no pequeno porto de Kona, 70 quilômetros ao norte de Mopti. Era uma pinasse adaptada, com banheiro (um buraco no chão), cozinha (um fogareiro) e espaço para uma dúzia de tubabs, ou “cara-pálidas”. Se fossem malineses, a mesma canoa certamente seria ocupada por uma centena de pessoas. Esse prodígio da engenharia naval subsaariana consiste basicamente de um casco de mogno africano, com 20 metros de comprimento, e uma capota sustentada por galhos entrelaçados e coberta por esteiras de palha. Seria perfeito se não fosse necessário, a toda hora, tirar com um balde a água que se acumula no piso. Terceiro encontro: os bozos. A visão que de imediato atrai a atenção da pinasse inteira é a de uma mulher banhando-se com os seios à mostra. Já faz tempo que as tribos do Mali deixaram de andar nuas, mas os bozos, povo tão íntimo do rio, parece não ter descoberto a vergonha. Mais um claro exemplo de muçulmanos ma non troppo. Os bozos são pescadores, os melhores do Níger, e semi-nômades. Cada família tem sua moradia permanente, feita de barro, para os meses de seca. No resto do ano, sobe e desce o rio em busca da melhor pescaria. Vivem alguns meses em tendas de palha e, quando os peixes acabam, vão procurar outro lugar para pescar. Todo grande rio é uma estrada para a civilização. O Níger também o foi. Há cerca de 2 mil anos, suas margens viram nascer as primeiras cidades da África Ocidental. Estamos falando do terceiro maior rio do continente africano. Um gigante que brota nas selvas da Guiné, cruza o Mali e, quando topa com o Saara, muda seu curso para o sul, como acovardado, até espalhar-se num delta na costa nigeriana. O Mali só existe graças ao Níger. O rio é fonte de comida, via de comércio, meio de transporte e até lavanderia: suas águas lavam roupas, gente, motos, caminhões e carros – inclusive nossos Range Rovers. O Níger poderia ter sido um Nilo? Sim, mas no momento em que enxergo lavouras ralas de sorgo ou milheto no fiapo de terra entre o céu e o rio, entendo um dos grandes dramas da África: o da terra ressecada que só vai dar de comer a seu povo no dia em que ele tenha dinheiro suficiente para fertilizá-la e irrigá-la. Quarto encontro: os songhais. De Mopti a Timbuctu, todas as grandes aldeias são songhais. Em geral não passam de um ajuntado de casas de barro retangulares dispostas em torno de uma mesquita, também de barro, mas é o mais próximo de um centro urbano por aqui. Convertidos ao Islã há 500 anos, os songhais são bem mais apegados ao Corão. Apesar de negros, vestem-se em trajes de clara influência árabe. Foram líderes de um grande império, hoje limitam-se a ser os mais ricos moradores das margens do Níger – ao menos quando vencem a seca e fazem brotar as lavouras de arroz, mandioca e amendoim. Uma de suas aldeias cresceu e virou cidade: Niafunké, lar de 20 mil habitantes e berço do célebre bluesman malinês Ali Farka Touré. É a última grande cidade antes de Timbuctu. Em sua porção central, o Níger desliza raso e preguiçoso através da savana. Nossa pinasse navega com a velocidade exata para tornar a viagem incomodamente lenta, mas rápida o suficiente para que um vento gelado percorresse o túnel de palha. A compensação: o contato com gente que vive sem eletricidade, estradas ou água corrente. Neste pedaço remoto do Mali, somos exóticos quanto eles para nós. Foram dois dias de barco e duas noites de acampamento à beira do rio, açoitados pelo zunir dos mosquitos carregados de malária e castigados pelo frio que crescia madrugada adentro. O deserto estava perto. Quinto encontro: os fulanis. Nos arredores de Niafunké, topamos com um acampamento cheio de barracas ovais armadas com esteiras de palha. Uma mulher me convida para entrar em sua casa. Quer me mostrar sua coleção de panelas e cabaças, caprichosamente empilhadas. Indica-me até o ângulo da foto. Elogio sua casa, muito limpa e ajeitada. Ela fica feliz. Quando lhe mostro a foto, solta um grito de alegria. As cabaças são o que há de mais valioso em sua vida. Os fulanis, afinal, são pastores nômades. Sua riqueza consiste naquilo que podem carregar consigo. Especula-se que sua origem seja na Etiópia, e de lá tenham se espalhado por todo o oeste africano. Teorias mais ousadas arriscam uma origem semita; outras, ainda mais audazes, julgam ser os fulanis uma das tribos perdidas de Israel. São diferentes, de fato: pele avermelhada, nariz adunco, corpos esguios. E um gosto especial pelas jóias e pelo brilho. Não é exagero dizer que as mulheres fulani são as mais vaidosas do Sahel. Tantos povos diferentes poderiam ter transformado o Mali numa nação beligerante e genocida – como é de praxe nestas bandas. Mas tornou-se um espantoso oásis de estabilidade política. Conquistada a duras penas, é certo, mas sem sangue derramado. Kamissoko, outro guia, tem sua explicação: “Aqui, todos os povos tiveram a sua vez na História”. Menos os tuaregues. E é justamente seu território que se aproxima à medida em que a estrada que parte de Nianfunké se enche de dunas e camelos. O Saara está próximo, Timbuctu também. O norte do Mali é um outro Mali, o domínio do misterioso, do inacessível. É ele que se anuncia quando, sob o sol do fim da tarde, Timbuctu brota no horizonte. Em 1825, a Sociedade Geográfica Francesa lançou um desafio: um prêmio 10 mil francos ao primeiro que chegasse a Timbuctu e conseguisse voltar – vivo. O inglês Gordon Laing topou. Partiu da Líbia com mais três homens, disposto a cruzar o Saara. No caminho, foi atacado por tuaregues enquanto dormia, teve o corpo inteiro desfigurado e os companheiros mortos. Mas chegou. Foi o primeiro ocidental a vê-la. Só não pôde voltar: morreu decapitado dois dias depois de ter saído. Sexto encontro: os tuaregues. Antes que a noite caia sobre Timbuctu, saio pelas ruas para um rápido reconhecimento. Sou logo interpelado por um jovem com a cabeça envolta num turbante azul. É Mohamed, que me convida para conhecer sua lojinha. Em poucos minutos, me vejo persuadido a tomar chá na casa de sua avó. Lógico: quer vender-me suas bugigangas. Mas é uma oportunidade e tanto para conhecer os tuaregues. Seu irmão menor, Mohamedthina, junta-se a nós. A casa é pobre, mas um bom abrigo quando ambos vão a Timbuctu fazer negócio. Seu lar mesmo está Araouane, oásis a uma semana de camelo, onde sua família tem um poço de onde extrai o sal. Mohamed já foi vendê-lo em Ouarzazate, no Marrocos, numa viagem de caravana que levou 55 dias. Ele agora planeja ir a Meca. Mas não de camelo, como seus antepassados. Levaria 6 meses. Vai mesmo é de avião, via Bamaco. Embora senhores absolutos do Saara, os tuaregues nunca tiveram uma nação própria. Pelo contrário: passaram a História pastoreando cabras através das fronteiras, comandando caravanas e celebrando os deslimites de sua vida nômade. Os tuaregues do Mali, porém, quiseram seu quinhão. Nos anos 90, acusando descaso do governo, iniciaram uma guerrilha separatista que sacudiu a santa estabilidade do país. O armistício já tem mais de uma década, mas a tensão no norte não se diluiu. No resto do país, permanece uma forte hostilidade contra os tuaregues. Também em Timbuctu, fronteira imediata entre o conhecido e o desconhecido. Aviso aos viajantes deste século: Timbuctu não é mais Timbuctu. Já não era quando Gordon Laing a viu pela primeira vez. Havia deixado de sê-lo em 1591, quando fora atacada por mercenários marroquinos e condenada à eterna decadência. Na manhã seguinte à minha chegada, sob a luz do dia, descubro, com certo pesar, que Timbuctu é um maldito anticlímax. Estou diante de uma cidade de 45 mil habitantes que tenta, com esforço, pôr o pé na modernidade. As casas de barro agora são de tijolos, e a paisagem inclui motos, carros, antenas e fios de eletricidade. Timbuctu já foi uma grande cidade. Hoje não passa de uma cidade grande. Cheguei com 500 anos de atraso. Há resquícios, como as três grandes mesquitas de barro que há séculos vêm sendo remodeladas anualmente, depois da estação das chuvas. A de Djingarey Ber, erguida no século 14, é uma das mais antigas da África Ocidental. Para construí-la, importaram o arquiteto da Andaluzia e pagaram-lhe 54 quilos em ouro. Mais vestígios: 100 mil manuscritos medievais guardados em bibliotecas secretas, mantidas a sete chaves pelas famílias desde a época da invasão marroquina. Trinta mil estão na Biblioteca Ahmed Baba, instituição que tenta reunir esses tesouros e guardá-los num lugar mais seguro. Os resíduos mais eloquentes da antiga grandeza, contudo, estão no domínio do impalpável. Enquanto percorro as ruazinhas de areia (só uma avenida é asfaltada), noto que a cidade não perdeu o viço do comércio. No grande mercado que é o centro, vendem-se de turbantes a blocos de sal. Para os turistas, camisetas com a estampa “Eu estive em Timbuctu e voltei”. O burburinho é o de sempre, mas ele aqui parece carregar uma inquietação que atravessou os séculos e se espalha pelo ar como o Saara sobre as ruas. Ainda que eu ignorasse a História, uma brisa espessa e aflita me diria que algo de muito importante aconteceu aqui. Timbuctu não é qualquer lugar. Tirando os fios, as motos e os tijolos, foi mais ou menos no estado em que se encontra hoje que Timbuctu surgiu diante de René Caillié. O jovem francês passara um ano sendo iniciado no Islã por uma tribo de nômades fanáticos, antes de lançar-se à jornada. Disfarçado de muçulmando, descalço e sozinho, Caillié chegou a Timbuctu em abril de 1828. E voltou, vivo. Levou o tal prêmio de 10 mil francos, mas escreveu em seu relato que a cidade não era isso tudo. Profanou a lenda, foi tido como charlatão e morreu seis anos depois, esquecido. Enfim: Timbuctu vale a viagem? Se você fosse um viajante do século 19 e tivesse sofrido os diabos para encontrar um amontoado de casas de barro, talvez não. Talvez sim. De todas as descobertas contidas numa viagem, é provável que a do destino final seja a menos relevante. “Um bom viajante não tem a intenção de chegar”, escreveu Lao Tsé, mestre do taoísmo. A única coisa que importa em Timbuctu é sua busca. Ainda que tal lugar não exista, como acreditam os jovens ingleses. E talvez não exista mesmo. No fim, todos os caminhos levam a Timbuctu. |