Reportagem publicada na revista Gol em dezembro de 2014
|
O mar, a areia e o rio
Há o rio e há o mar. E, entre eles, uma língua de areia, extensa e atrevida, que parece enraizar-se no sopé do Morro da Gamboa, num ponto inexato onde se confunde com a poeira litorânea que pousa sobre o continente. A língua é península e também fronteira que separa a água doce da salgada, cujo encontro só se dá por meio da desembocadura que contorna a ponta dessa língua e serve de acesso aos cardumes que buscam o leito cálido do Rio da Madre para procriar. À noite, os camarões. De dia, robalos, corvinas, paratis e uma ou outra tainha esperta que tenha logrado escapar do cerco empreendido pelos botes de pesca em alto-mar. Não serão muitos, porém, os peixes que alcançarão a cabeceira do rio, pois ali, diante dessa mesma desembocadura, sobre as pedras do costão, haverá sempre ao menos dois ou três pescadores de tarrafa na mão e olhar atento, certos de garantir o sustento do dia. Não muito longe das pedras, em frente à curva final do Rio da Madre, seu Cabral construiu seu naco de chão. Sim: o que antes era uma pequena baía de água doce Valdemiro Alvim Correa (“Cabral” não é sobrenome, é apelido) transformou numa extensão do continente. Dos 66 anos de existência, quase que integralmente vividos na Guarda do Embaú, ele gastou 40 anos arrancando a areia da praia, obcecado em aterrar o leito de rio sobre o qual já havia erguido, mediante palafitas, seu rancho de pesca. Além do tempo, a empreitada lhe custou 180 pás, 120 carrinhos de mão, 48 mil viagens de bote carregando areia através do rio e incontáveis acusações de insanidade, inclusive da própria mulher. E então, quando menos se esperava, seu Cabral se revelou um visionário. Em 2005, no terreno recém-concluído, surgiu o estacionamento mais disputado da Guarda. Isso significa, para o dono e sua família, uma receita garantida de pelo menos mil reais por dia durante a alta temporada. “Eu me considero o maior milionário da Guarda”, ele resume. “Com uma pá fiz meu tesouro”. Quem poderia imaginar, afinal, cinco décadas atrás, que uma vila de pescadores de apenas doze casas se tornaria um dos pontos mais concorridos do litoral catarinense? Bem, seu Cabral pôde. Antes mesmo que o asfalto chegasse, em 1967, o então pescador percebeu que a língua de areia e sua paisagem circundante não tardariam em passar despercebidas. E assim foi: em 1972, apareceu o primeiro surfista por ali. Um tal de Carlos, carioca, morador de Botafogo. A notícia se espalhou sem demora e logo surgiram outros, igualmente munidos de prancha, atraídos por aquelas que diziam ser as ondas mais perfeitas do nosso litoral meridional. “Parecia a Indonésia”, lembra o modelo carioca Paulo Zulu, um desses tantos que integram o rol de pioneiros da Guarda do Embaú. E Paulo diz “parecia” pois as ondas da Guarda há muito já deixaram de ser aquelas que ele conheceu no verão de 1983. Era uma combinação irretocável: as águas ferozes do Rio da Madre se entregavam às do mar para então, juntas, construírem tubos perfeitos que avançavam até quase quebrar na praia. Nas décadas seguintes, contudo, plantações de arroz foram surgindo na cabeceira do rio, que, assoreado, nunca mais recuperou a vazão daqueles tempos. As ondas encolheram, mas não a Guarda do Embaú, que, apesar de tudo, continuou a receber surfistas dos mais diversos cantos do país. Quem não gostou foram os pescadores, não apenas irritados com o fim do sossego de séculos como também receosos de que as pranchas espantassem as tainhas – captura de maior valor por ali. Logo se provou que peixes e surfistas são capazes da mais pacífica convivência, mas, como neste caso vale a lei do mais antigo, ninguém bota o pé nas areias da Guarda entre maio e julho, que é quando as tainhas empreendem sua migração anual, vindas do sul, rumo aos campos de desova. Impedir o acesso à praia não é difícil, pois o Rio da Madre serve como divisa natural entre o continente e a língua de areia, que permanece até hoje linda e selvagem, livre de construções e rastros de veículos motorizados. Embora seja possível cruzar o rio a nado ou a pé, quando a maré está baixa, a maneira mais usual de alcançar a praia é embarcando num bote (chamado localmente de bateira), ao custo de 2 reais por pessoa. No inverno, portanto, os barcos simplesmente não zarpam. Restam apenas as areias vazias, as águas geladas e as ondas sem pranchas. Em agosto, as tainhas vão embora e cedem lugar aos surfistas, que chegam quase que simultaneamente junto com as primeiras baleias-francas. As ondas se mantêm altas até novembro, angariando, a cada fim de semana, um número cada vez maior de rapazes e garotas de corpos impecáveis, meticulosamente talhados ao longo do ano para a plena exibição sob o sol dos trópicos. Há famílias também, mas a Guarda do Embaú granjeou fama como destino de solteiros em busca da diversão sem culpa – aos pares ou em grupo. Ao menos no verão, eles parecem ser a espécie mais abundante do lugar, invariavelmente congregada em torno dos mesmos rituais diários. À tarde, praia e surfe; à noite, bar e balada. E muito sono de manhã. Mas é claro que a vida na Guarda do Embaú não se resume a isso. Quem não surfa, ou quer dar uma pausa nas ondas, tem o leito do Rio da Madre à sua inteira disposição, perfeito para ser explorado de remo em punho – seja a bordo de um caiaque, seja de pé sobre uma prancha de surfe (o chamado stand up paddle). Caminhar também é preciso, sobretudo quando se tem uma trilha como a que vai até a vizinha praia da Pinheira, cujo trajeto inclui duas praias selvagens, grandes conjuntos de rochedos, matas povoadas por corujas e quero-queros e ainda campinas onde vacas brancas pastam à beira-mar. Basta seguir o caminho que circunda o costão inicialmente banhado pelo Rio da Madre, mas que depois se revela uma península apontada para o norte, na direção da Ilha de Santa Catarina (e com vista para ela), fustigada pelas arrebentações do Atlântico. Direto, sem escalas, leva-se não mais que uma hora e meia. Mas quem há de resistir à contemplação reverente da paisagem que conecta as duas praias? Como não se refrescar nas águas que banham as areias virgens da Prainha? O mesmo costão reserva ainda outra caminhada, mais curta, porém não menos estupenda. É a trilha que vai, através da mata, até a Pedra do Urubu, de onde se tem a melhor visão panorâmica da língua de areia flanqueada, de um lado, pelas águas do Rio da Madre e, do outro, pelas do mar. A mesma trilha, por meio de uma bifurcação, leva também à Prainha. Seja qual for o gasto de energia empreendido na Guarda – surfando, remando, caminhando, paquerando ou dançando –, por sorte haverá sempre uma tainha assada à disposição da freguesia nos restaurantes da vila. Como a já célebre tainha na brasa servida no restaurante da pousada Zululand. Célebre não só pela qualidade, impecável, mas também pelas personalidades envolvidas no seu preparo. Uma é o chef responsável pelo prato, o sul-mato-grossense Bruno Fioravante Vale, cujo talento começa a transpor as fronteiras da praia. Não o talento para a cozinha, que é inegável, mas para o humor. Basta uma peruca pink, um vestido floral e Bruno se converte em Roxely Raxada, a mais desbocada repórter da Guarda do Embaú. Começou como brincadeira, mas já está virando coisa séria: Bruno está prestes a estrear um quadro num canal de tevê pela internet. O outro astro – este já veterano – por trás da tainha é Paulo Zulu, dono da pousada, autor da receita e ainda o encarregado de capturar o peixe durante a temporada, junto com o mestre pescador com quem tem um barco em sociedade. Vale mencionar que Paulo, antes de modelo, foi pescador no Rio de Janeiro, paixão antiga que se tornou uma das razões pelas quais, em 1997, escolheu trocar a glória das passarelas pelo semi-exílio à beira-mar. “Aqui tinha tudo o que eu precisava para ser feliz: onda, pesca, mulheres bonitas, gente hospitaleira e contato com a natureza”. Paulo só não teve sossego, pois a mídia imediatamente veio atrás, querendo entender o que havia de tão bom aqui para que um modelo internacional ousasse tamanha mudança de vida. E foi assim, meio sem querer, que a língua de areia acabou sendo revelada para o Brasil. E assim foi, também, que a Guarda do Embaú cumpriu seu destino, conforme profetizado por seu Cabral cinco décadas atrás. |