Reportagem publicada na revista The President em março de 2012
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Araquém Alcântara, o salvador da pátria
Fora de seu habitat, Araquém Alcântara é um animal visivelmente aturdido. Nem mesmo as duas bromélias imensas que antecedem a entrada de seu escritório no bairro da Vila Olímpia, em São Paulo, parecem sossegar o espírito inquieto deste homem das selvas e dos sertões, dono de 61 anos recém-feitos e bem vividos. Quem vê o belo paisagismo que conduz à porta principal, deve calcular que a sede da editora Terra Brasil seja uma espécie de refúgio, um descanso na loucura para os que não suportam a vida na cidade. Lá dentro, contudo, o que se encontra abancado no andar de cima é uma criatura um tanto desnorteada, como se procurasse se apropriar de um lugar que não é o seu. Não há um só assunto no qual Araquém consiga deter-se por mais de cinco minutos. Seja porque atende ao telefone, porque recebe o eletricista, porque responde a um torpedo, ou mesmo porque ele próprio às vezes foge do tema para capturar outro que está ali à mão, como a ausência dos lobos-guarás na Serra da Canastra ou a descoberta do zen-budismo. “Cara, aqui é a minha cruz”, ele afirma, entre o desabafo e a rendição. E cita a cabala: “Todos nós temos um verso e um reverso, né? Este é o meu reverso”. Araquém se define um andarilho e, como tal, só fica bem se estiver em movimento, de preferência cruzando charcos ou transpondo morros. Quando viaja aos lugares que gosta de frequentar, onde sinal de celular é apenas uma vaga promessa de futuro, diz que seu coração “voa como uma harpia”. Já no escritório de São Paulo, aprisionado diante de uma escrivaninha, se vê obrigado a atender às demandas habituais de um profissional autônomo, ainda mais exigentes para quem fez da fotografia de natureza – nicho dos mais estreitos – seu meio de vida. Nesse sentido, Araquém foi um dos primeiros no Brasil. E, até agora, permanece um dos poucos. Conversar com um Araquém arrancado de seu habitat é como penetrar uma mata fechada, sem picada nem trilha demarcada. Não que sua fala não seja articulada, muito pelo contrário, mas são tantas as ideias e os pensamentos que ele vai desfiando uns após os outros, às vezes com idas e vindas, que o resultado, para quem não o conhece, é vivamente desorientador. Contudo, embora seja um homem das imagens, Araquém gosta de escolher as palavras com cuidado, e, quando as encontra, não raro as sublinha, cheio de ênfase, como se quisesse reter a grandeza daquele instante. Aí, é como se de repente aquela mata se iluminasse. Como se, depois de um emaranhado de cipós, surgisse uma belíssima cachoeira ou uma vista para as montanhas, ou quem sabe uma onça bebendo água no riacho. Até quando fala, Araquém parece que fotografa. Dos muitos assuntos que escapam da boca desse florianopolitano criado em Santos, um ele tem gostado particularmente de destacar. É o filme Amazônia – Planeta Verde, co-produção franco-brasileira para o qual foi escalado como consultor artístico e fotógrafo de still. “Quarenta anos depois, chega o cinema na minha vida”, ele diz, todo entusiasmado. Não só pela novidade da linguagem, mas também pela oportunidade de fotografar a fauna amazônica como nunca havia feito antes. O filme, ainda em fase de produção, é um docudrama na linha de A Marcha dos Pinguins, só que o protagonista aqui é um macaco-prego, cujo olhar servirá de guia para apresentar a Amazônia ao espectador. Dezenas de bichos desfilarão na tela, e são eles que Araquém está incumbido de fotografar durante as filmagens. Para quem passou a vida perseguindo animais em seu habitat, às vezes aturando horas tocaiado na mata à espera do ângulo perfeito, ganhar todo um “elenco” selvagem à sua disposição soa quase como um presente dos céus. Pela primeira vez, Araquém tem onças, harpias e macacos atendendo a todos (ou quase todos) os seus pedidos. Não são animais adestrados, mas estão sob o controle de tratadores, o que permite ao fotógrafo captar cenas ou detalhes que seriam dificílimos de obter na natureza. “Por um dia, tive uma onça só para mim”, exulta. “Tudo que eu pedia, ela fazia.” Para ele, há uma feliz coincidência no aparecimento de um filme bem agora, quando completa exatos 40 anos de profissão. Foi também um filme, ele lembra, o gatilho inicial por trás de toda uma vida dedicada à fotografia. E aí voltamos para 1970, quando um Araquém ainda na faculdade de Comunicação assiste, numa sessão maldita de um cinema em Santos, a A Ilha Nua, do japonês Kaneto Shindô. Era uma fita quase sem palavras, apenas o silêncio estético e extático das imagens em movimento. “Saí transido”, recorda. “Fui para a praia, tirei o tênis e pensei: ´acho que posso dizer coisas assim´.” No dia seguinte, pediu uma Yashica emprestada a uma amiga e foi ao porto. Passou a noite tentando fotografar, mas a falta da técnica não lhe permitiu sequer apertar o botão. Só quando amanhecia conseguiu fazer sua primeira foto, e era a de uma prostituta no ponto de ônibus, que lhe mostrava o sexo. O ano que ele considera inaugural para sua carreira, porém, é 1972, quando realizou a primeira exposição: uma série de imagens dos urubus que viviam próximos às areias de Santos. Não era um tema que se pudesse considerar elegante, ainda mais em tempos de ditadura, mas naquelas fotos já germinava a vontade de Araquém de mostrar ao mundo um Brasil que está lá, mas ninguém vê. É esse o Brasil que ele vem teimando em revelar nas últimas quatro décadas, com vigor que beira a militância. O resultado disso, até agora, foram mais de cem exposições ao redor do mundo e nada menos que 44 livros publicados. Dois desses livros acabam de chegar às livrarias. É a nova mania de Araquém: lançar várias obras de uma vez. Foi assim em 2007, quando soltou no mercado três volumes – A Grande Floresta, Mar de Dentro e Histórias de um Fotógrafo Viajante – e em 2008, quando publicou Bichos do Brasil, Mata Atlântica e Cabeça do Cachorro, este em co-autoria com Dráuzio Varella. Agora, ele aposta em mais duas parcerias: Cachaça, com o sommelier Manoel Beato, e Amazônia, com o chef Alex Atala. No primeiro, documenta em fotos todo o processo de produção da pinga, dos canaviais aos botecos, enquanto Beato discorre sobre a história e os aromas da bebida, cercado de farto material iconográfico. Já no belo volume sobre a Amazônia, Araquém divide com o afamado cozinheiro do D.O.M. as lembranças de uma floresta que ambos viram sucumbir nos últimos trinta anos. Juntos, os dois livros dão mais um passo na consolidação de um projeto nada modesto, iniciado em 1998 com o primeiro livro, Terra Brasil, que é o de recompor a memória geográfica do Brasil por meio da fotografia. Algo parecido com o que Ansel Adams fez nos Estados Unidos, só que numa escala ainda maior, e em cores. Muitas cores. Para isso, Araquém percorre o país há quatro décadas em busca de lugares que a mão do homem ainda não tocou, ou, se tocou, o fez numa preciosa comunhão que, de todo modo, vale a pena documentar. Raros brasileiros conhecem tão bem seu país quanto Araquém. Talvez até se conte nos dedos os que puseram os pés em todos os nossos parques nacionais. E, ainda assim, ele jura que há lugares onde não esteve, sobretudo na Amazônia. São essas lacunas que ele vem tratando de preencher nos últimos anos. Dráuzio Varella, no Cabeça do Cachorro, define Araquém como um “intérprete do Brasil”, e este é um papel que não só lhe cai muito bem, como ele insiste em defender, com rara coerência. “O Brasil é a minha matriz criativa”, ele declara, como a título de divisa pessoal. A arte de Araquém é, antes de tudo, uma arte engajada. Valendo-se do belo, ele procura sensibilizar o cidadão comum e atrair sua atenção para a preservação do patrimônio ambiental brasileiro. “Fotógrafos de natureza fazem um trabalho de educação nesse país. Nosso papel é seduzir as pessoas, para então espalhar beleza e inquietação.” O plano, pelo jeito, está dando certo: catorze anos depois de lançado, Terra Brasil continua sendo o grande best-seller entre os livros de fotografia no país, com 80 mil exemplares vendidos e uma décima-segunda edição a caminho da gráfica. Vale aqui mais uma volta no tempo, precisamente ao ano de 1979, quando Araquém é convocado para uma reportagem sobre a Jureia, um dos raros nacos de Mata Atlântica integralmente preservada no litoral paulista. “Foi quando entrei na mata pela primeira vez”, lembra. E tal foi o amor que ele desenvolveu por aquele lugar, que pouco tempo depois, ao saber da possível construção de duas usinas nucleares na região, não teve dúvidas: catou o velho pai, andou com ele a pé por 36 quilômetros até a Jureia e lá bateu a foto que fez seu nome correr o mundo. “Ali, a minha fotografia virou ideológica”. Era um retrato do pai – um ex-marinheiro analfabeto, com ares de revolucionário – segurando uma foto onde se viam os ossos de vítimas de Hiroshima. O quanto essa imagem contribuiu para a sensibilização do poder público, Araquém não sabe dizer, mas o fato é que, logo depois, o projeto das usinas foi arquivado e a Jureia virou uma Estação Ecológica. “Essa foto me resume além do próprio ato de fotografar”, afirma. A partir daí, Araquém entendeu que a beleza, mais do que mera fruição estética, também pode ser instrumento de transformação – do mundo e de si mesmo. Na introdução de um desses seus livros, fala até em “experimentação mística do encontro com a beleza”. E compara o ato de fotografar ao satori do zen-budismo, aquele estado de iluminação que conduz ao despertar das percepções, no qual, segundo ele, o fotógrafo se encontra “em comunhão total com o meio, dissolvendo-se no vazio entre o céu e a terra”. Rejeitando, afinal, os próprios rótulos que o definem, ele resume: “Para mim, não existe fotografia de natureza. Existe caminho de autoconhecimento”. Essa viagem em busca de si mesmo nas matas, rios e sertões do Brasil já leva quarenta anos. E, se depender da tenacidade que Araquém aplica nos projetos futuros, tem chão de sobra para mais um bom par de décadas. Hoje, ele parece interessado em transpor as fronteiras que ele mesmo criou, ansioso por descobrir o que existe do outro lado. Note que, depois de tornar-se um dos melhores tradutores da luz dos Trópicos, ele anda flertando com o preto-e-branco. “Estou apaixonado”, confessa. Recentemente, lançou dois volumes em que abre mão da cor: Sertão de Fim e Araquém Alcântara: Fotografias. Outra manobra audaz, também recente, foi confiar a edição dos livros a um curador. Desde Sertão sem Fim, seu trabalho termina na concepção do projeto. Na hora de escolher as imagens que serão impressas, é outro fotógrafo que assume. Um de seus preferidos tem sido Eder Chiodetto, que já assina a curadoria de três livros. “Eu estou aprendendo a me despojar. Chega uma hora em que tem luz demais em você, que te cega.” Desobrigar-se da edição final é, por outro lado, também uma maneira que Araquém encontrou de concentrar sua força criativa naquilo que mais gosta de fazer, que é, como ele mesmo já disse, “voar como uma harpia”. Ou seja, varar o Brasil em busca de fotos que ainda não fez e de lugares onde ainda não esteve. Ultimamente, Araquém tem dado particular atenção à Amazônia, fronteira inclusive para ele próprio. Só de projetos de livros dedicados à floresta, ele já tem cinco na cartela. Entre eles, uma viagem da nascente à foz. E tem mais. Muito mais. Como ele mesmo diz, “eu sou uma usina de criação”. Entre um assunto e outro, ele cita um projeto aqui, outro lá, como se uma força da natureza qualquer – tipo um gêiser ou algo parecido – lhe fizesse jorrar ideias a todo instante. Nos próximos anos, só para citar alguns projetos, Araquém deve lançar um livro infantil sobre a fauna brasileira, realizar um documentário sobre sua carreira e ainda publicar uma obra pela qual tem especial carinho, chamada Paragens. “São lugares onde o tempo só existe em função da eternidade. É o que eu chamo de geografia da ausência”, explica. Para produzir o livro, passará dois anos viajando pelos ermos do nação, registrando as áreas que não mudam desde que a natureza as criou. É bem provável, inclusive, que ele seja o primeiro a fotografá-las, talvez até o primeiro brasileiro a conhecê-las. E, em se tratando de Araquém Alcântara, não há nada de novo nisso. “Não foi o Tom Jobim que disse que o Brasil não é para principiantes? Pois eu estou tentando ser profissional.” |